domingo, 28 de março de 2010

razão, razões

" (...) Havia então os conformistas, assim chamados. E os conformistas do inconformismo. Perguntavam-se, uns aos outros, qual era o inconformismo mais na moda. E o seguiam. Ninguém, literalmente ninguém, ousava encarar a realidade. A língua falada era deturpada sistematicamente. Ninguém escrevia o que se dizia. Ninguém dizia como se devia dizer. Então, quando um dizia como devia, era acusado de falso ou de falsário. (...) Os mais atrasados continuavam a acreditar que o Sol girava em torno da Terra. E eu, de Galileu, ali, a ter que lhes dizer, sabe, olha! Enquanto isso uma meia dúzia, com a visão um pouco mais adiantada, já afirmava "corajosamente" que a Terra é que girava em torno do Sol. E eu, em pânico, tendo que lhes tornar a afirmar a evidente verdade de que isso era mentira. E só olhar o transcurso de um dia para se perceber a falácia de todos os princípios: nem a Terra gira em torno do Sol nem este gira em torno da Terra. Só existe a dinâmica pura, que torna a ação a suprema afirmativa, e transforma a vida num gigantesco happening, onde qualquer afirmativa é leviana, pois já está morta no instante de nascer. (...) Ninguém se dava. Trocava-se. Se me lês, te leio. Ninguém exigia. Barganhava-se. Os que gritavam estavam apenas querendo o posto de coordenador do grito, ou, pior, censurador do grito, impedidor do grito que não fosse o seu. Os que ouviam os gritos não concordavam com eles, mas deixavam-se intimidar. E criava-se, assim, o Ministério das Perguntas sem Resposta, é isso. E tínhamos todas as respostas prontas para perguntas que ninguém nunca fazia. Ninguém nunca faria. Brandiam-no, usavam-no, apontavam-no, mas não acreditavam nele. Tinham bastante razão, já que o povo também não se acreditava. O povo não existia. Estava ali apenas de passagem, para assumir um cargo de vigia, um posto de chefia, subir um degrau a mais na escada, uma escada medíocre mas com bastante degraus, quase escada de Jacó de tão longa. Não havia o perigo de se bater com a cabeça na igualdade. (...) De modo que, depois de perder o bonde e a esperança, o país perdeu, sucessivamente, o trem e a vergonha, o navio e o estímulo vital, o avião a jato e a ira sagrada. O escotismo não me seduzia. O único Baden Powell que me seduzia era o da viola. Se eu tocasse daquele jeito pegava o violão e ia tocar nas profundezas do inferno. Juro! Mas eu mexia com o diabo da palavra e, pouco a pouco, fui me aprofundando até chegar à conclusão de que ninguém sabe duas línguas e só vive na sua. Tinha uns que pensavam que eu sabia alemães, greguices, latinadas, anglo-saxomanias, que isso é que importava. Importava até onde? Mas a minha palavrinha doméstica essa eu tinha aprendido. Era minha amiga, íntima paca. Eu fazia o que queria com ela, pelo simples fato de que deixava ela fazer o que queria comigo. Foi vindo e indo, a coisa. Um dia percebemos que estávamos apaixonados, a palavra e eu. Que eu podia procriar nela: e ela deixava. Era uma arma de fazer coisas quase indizíveis. Se chamava, acho, precisão. Juntos, ela e eu, nos colocamos a serviço de coisas tão essenciais, que nos doíam. Pelo supremo orgulho de ninguém nos entender e à nossa comunhão. E aí nós sentamos e escrevemos, com precisão científica, vendo o que queríamos, como ia o mundo, no exato ponto ótico em que vivíamos, o mundo, sim, 1963. O mundo em geral, o mundo nosso, Brasil, o mundo meu, em particular. Uma simbiose, se é que isso não é uma doença. E Millôr olhou e viu que o mundo não era bom. E aí consertou os mares e os ares e não ficou satisfeito. E aí consertou os lares e os bares. E Millôr olhou os lares e os bares e viu que os lares e os bares não eram bons. E então, no terceiro dia, descansou. Depois descansou também no quarto e no quinto e só foi pegar no batente de novo no sexto porque chovia e não dava praia. E, como chovia, Millôr olhou outra vez e viu que viver tinha se tornado mortal."

Millôr Fernandes. Prefácio de Flávia, cabeça, tronco e membros.

sensacional!!!

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