quarta-feira, 21 de abril de 2010

A MENTIRA TEM PERNAS LINDAS


Caligrafia

Escreva em letra miúda a sua sensação de grandeza.

Num muro, bilhete, na testa, no verso da tristeza.

Mas escreva em letras miúdas para caber

entre os dentes da raiva, entre os tempos da pausa,

entre o peso e a alça, o desejo e a calça.

Nomeie seus instantes.

Para ler com clareza,

não é a letra que

precisa ser grande.


-te

Tomou em cápsulas para ter coragem,

tomou com água e quis tombar paredes e colunas.

Foi torta e tipicamente tensa na temperatura tonta daquele tempo, mas depois, tranquila,

teceu os fatos, tricotou as tensões e tirou

disso tecidos e tapetes perfeitos para voar.

Tocou o céu e todas as Terras sem tremer,

teimou com as nuvens e entrou pro time dos tristes nunca mais. Testou as últimas chances e tingiu suas

tentativas com cores que antes não tinha nos olhos.

Tinta fresca para novos dias, tempo tenro para tardes

e terraços, trajes tipo preguiça, teatro para todos os tatos, aplausos para todos os toques, temperos para os terços das coisas, tabuleiros para os gestos e detalhes.

E depois de tanto voo, tanto azul, tanto texto, tanta tarde tímida, o túmulo da vergonha transbordou terceiras

intenções e eu também tomei das pequenas cápsulas para tratar as tonturas de ver e nunca ter-te.


Overbodose

Overbodose é um verbo viciado na linguagem. Overbodose.

São doze bodes presos? São bodes expiatórios vagando com os meus segredos. O verbo é over, o verbo é óvulo, ovni, é ovo. O verbo é oco.

O indizível é o que mais odeio. Ele me abusa quando não há canetas, me ouve se leio pra dentro. O verbo é vértebra e músculo,

orgânico como a overdose. Obtuso como um devaneio, vai saber.

O verbo sabe ler? Ele é pobre, não escolhe. O verbo é pele. É bobo,

é bento. É a segunda ideia de Deus, é feito de carne, feito de eu.

O verbo não é vantagem, é direito. Em vinagre vigora meus defeitos,

conserva cabeceiras e olheiras quando me deito.

O verbo é a cama, é a grana, e nunca estamos satisfeitos.


O sal

Saiu pra comprar sal. Nem sempre a doce vida é a melhor vida. Doce enjoa. O sal dá sede. Sal deixa a gente vivo. Ele saiu pra comprar sal.
Deixou a casa acesa. A luz em cima da mesa.
A busca é sempre a mesma: levar o sal pra casa, tempero de uma risada, graça até pro copo d'água,
mas a sede é sempre vesga.
Ele cruzou esquinas, cruzou os dedos, mal sabia.
O sal era a ausência que
ele deixava quando saía, era o frio de estar sozinho, o sal era só até
a esquina, era ela sentir a falta um pouquinho. E ela sentiu.
Por isso temperou os planos pro futuro com têmporas tensas e empolgadas.
Visões um tanto salgadas, mão molhada, ela sob a luz daquela mesa.
Esfomeada. Esperou.
Mais um tanto de espera, mais um tanto de espera, mais um tanto de espera, mais um tanto de espera, ele não voltou. Pesou demais a mão no tempo e o tempero dessalgou.
Ela escreveu na geladeira "o sal acabou".
E saiu pra comprar um doce, mas a busca é sempre amor.

DE LUCIANA ELAIUY (publicado aqui)

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